terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O filme do Lula e os dois lados da arquibancada

O artigo foi publicado no Digestivo Cultural, dia 19/01/2010.
Autor: Diogo Salles

Lula, o filho do Brasil. Esse é o nome da polêmica do ano (que mal começou). Já é possível antecipar essa previsão, pois o filme invade não só o debate sobre a produção de cinema nacional (apimentado pela polêmica sobre as leis de incentivo), mas também o debate político. Com orçamento recorde, atmosfera novelesca e elenco global, a película busca mimetizar todos os arquétipos (e feitos) de 2 Filhos de Francisco, se desenhando como a mais controversa cinebiografia já feita por aqui. Feito para emocionar, feito para chorar e, principalmente, feito para vender. Para efeitos cênicos, a discussão sobre o filme é nula, pois não traz nenhuma inovação e não se vende como alta cultura. Sob esse ponto de vista, qualquer crítica fica oca ao analisá-lo sob os mais altos conceitos da sétima arte. Mas como o personagem principal é um presidente ainda em exercício do mandato (e que busca fazer o seu sucessor em ano eleitoral), não há como não analisá-lo sob o aspecto político.

Pode-se argumentar que O filho do Brasil foi feito sem dinheiro público ― o que é verdade ―, mas expõe de maneira grosseira o jogo promíscuo das empresas privadas que patrocinaram o filme, interessadas em adular o governo, com as piores das intenções. O espectador não fica livre nem dos "merchans", como na constrangedora cena em que os personagens pedem uma determinada cerveja, enxertando um slogan que nem existia na época em que o filme se passa. Há de se ressaltar a ótima caracterização do ator que incorporou Lula no filme. Rui Ricardo Diaz reproduz os trejeitos e a voz sem cair na caricatura. E Glória Pires é bastante contida (e por isso mesmo, correta) na interpretação de Dona Lindú, mãe de Lula.

Inicialmente idealizado como uma mistura de documentário com melodrama (vulgo "docudrama"), o diretor Fabio Barreto alterou a rota no meio do caminho e resolveu partir para a ficção, ora omitindo, ora "romanceando" fatos da vida do presidente, para efeitos dramáticos (e mercadológicos). No mais perigoso deles, o episódio em que os sindicalistas jogam o empresário do alto de uma escadaria da fábrica e este morre estatelado no chão, resultando numa histeria coletiva. No livro de Denise Paraná (que serviu de suporte para o filme), Lula "achou que estavam fazendo justiça", compactuando da atitude de seus companheiros. No filme, ele cai em prantos, horrorizado com toda aquela violência ― forjando um Lula humanista e, por isso mesmo, desumanizando-o. Deixando claro que, no filme, a intenção é somente esculpir um mito, tudo o que Lula (supostamente) teria de ruim é empurrado (metaforicamente) para o seu pai, Aristides, interpretado por Milhem Cortaz. Como bônus, entre outras ironias, temos Fabio Barreto e seu pai, Barretão (o Assis Chateaubriand do cinema nacional), admitindo terem sido eleitores de Fernando Henrique Cardoso, incitando ainda mais a (falsa) polêmica entre o ex e o atual presidente e alavancando a promoção do filme.

O ponto mais correto do filme (que se aproxima de um documentário) fica para a formação da figura política de Lula, remontando sua trajetória sindical. Para quem achava que o presidente já abraçava as causas esquerdistas na luta contra a ditadura militar, vai se decepcionar, pois o Lula que aparece naquela época, além de já ser carismático, era também conciliador, extremamente pragmático e apolítico (sim, no sentido ideológico ― procurando ficar alheio às lutas políticas dos anos 60 e 70). Só depois de liderar as greves no sindicato em 1978 é que Lula ficou famoso no país inteiro, e, posteriormente, foi abraçado pela "intelligentsia" de esquerda, que viria a fundar o Partido dos Trabalhadores. No filme, temos um bom retrato da gênese do camaleão político que vemos nos dias de hoje, que gesticula com a mão esquerda e manipula com a direita.

Os detratores acusaram o filme de ser eleitoreiro antes mesmo de ele chegar às telas. Ao que os defensores rebateram argumentando que ele não mostrava a trajetória política do presidente (acaba em 1980, pouco antes da fundação do PT). Ambos os lados têm razão... Em termos. Se o filme não mostra os feitos do governo, não pode ser tido como eleitoreiro, mas o desfecho épico, com imagens de Lula eleito em 2002, nos braços do povo, deixa uma mensagem subliminar de que aquela figura "romanceada" teria mantido todos os valores (que o filme acabara de ensinar) durante os oito anos de mandato. Imagine o que Dona Lindú pensaria se visse seu filho defendendo mensaleiros, abraçando Collor, mancomunando-se com Sarney e toda a alcateia do PMDB...

Mas, como era de se esperar, o problema de O filho do Brasil foi muito além das salas de exibição e dos cadernos e sites de cultura. Quando se tem um líder popular no poder, as reações vão da mais profunda idolatria ao ódio mais rancoroso. De um lado, a classe média ressentida, que se recusa a aceitar o ex-torneiro mecânico no poder. Atacam Lula pelo fato dele não ter estudado e defendem políticos com respeitáveis títulos de doutores (mesmo que seus currículos acadêmicos sejam tão extensos quanto suas fichas criminais). O ódio chega a tal ponto que, se escorregarem numa casca de banana e caírem de bunda no chão, são capazes de colocar a culpa no Lula. Na impossibilidade de arrancá-lo as tripas e vê-lo empalado em praça pública, pegam carona em qualquer bobagem que o presidente fala (e olha que são muitas) para impichá-lo moralmente. Com o filme, encontraram mais uma via para tentar converter seus interlocutores ao antilulismo fanático e oportunista.

Do outro lado, os pitbulls da "esquerda" militante. Empenham-se ― com todo o ódio ― na defesa cega e aguerrida de seu deus. Se já ficavam contrariados em ver uma simples charge no jornal, imagine o que acontece com alguém que resolver criticar o filme do "chefe". Qualquer crítica ou manifestação contrária pode (e deve) ser patrulhada. É aí que aparecem as muletas mais comuns do exército chapa-branca: "preconceito", "mídia", "elitista", "facista" (eles escrevem errado mesmo), "golpista", "direita"... Portanto, cuidado: se os pitbulls estiverem sem suas focinheiras, é bom que você já tenha tomado a sua dose da vacina contra a raiva...

A política, da maneira como é vista no Brasil, mostra uma paupérrima gama de cores: ou é preto ou é branco (a idiotice do debate é tão grande que muitos já insinuariam aqui uma polarização racial). Não existem tons de cinza em nossa palheta. O compromisso partidário não permite ser a favor do Pro-Uni e, ao mesmo tempo, contra o aparelhamento estatal (ou vice-versa). É também proibido elogiar a política de juros do Banco Central e, ao mesmo tempo, reconhecer os feitos do Bolsa Família ― ou criticar os dois, que seja. A discussão sobre as cotas raciais nas universidades, a política externa no caso Honduras e no caso Cesare Battisti... Tudo, absolutamente tudo no Brasil é discutido com uma cartilha ideológica ou partidária debaixo do braço (nem o STF escapa). Muitos não se dão nem ao trabalho de refletir o que está escrito nessas cartilhas, apenas regurgitam tudo o que ali está, de maneira absolutamente acrítica. Aqui, ou se é radicalmente contra ou se é colericamente a favor. De modo personalista e apaixonado, deixamos de reconhecer erros e acertos, para defendermos as resoluções mais descabidas, tudo em nome de identificações meramente pessoais. Quem quiser questionar alguma coisa, não precisa ficar em cima do muro, basta ficar acima do muro. Esse governo não é a soma de todos os medos, como muitos querem acreditar (as diferenças entre Lula e Hugo Chavez são abissais), mas também está muito longe de ser essa maravilha que os adeptos do discurso do "nunca antes nesse país" fazem parecer.

Ambas as frentes (contra e a favor), infiltradas em blogs políticos pretensamente "independentes" e/ou "imparciais", levam a defesa de suas concepções políticas às últimas consequências. O achincalhamento, a difamação, a intolerância e a perseguição implacável de seus "adversários" mostram do que é feita a arte do extremismo político. Num momento em que se tem uma eleição presidencial à frente e que Lula cumpre o seu último ano de mandato, o filme traz à tona os piores sentimentos e preconceitos daqueles que encaram o debate político como uma pancadaria entre torcidas num jogo de futebol. Além de colocar a internet em estado de sítio, o filme retoca a já pesada maquiagem publicitária do presidente, visando a aprovação máxima, a popularidade inatingível, a unanimidade ― uma contradição para um país que se pretende democrático. No país das novelas, pode funcionar como enredo de horário "nobre", mas ao "romancear" a trajetória de um líder político, insinua o culto à personalidade, remodelando-o para o consumo, como uma figura mítica, incorruptível e magnânima. Quem acompanha (mesmo que à distância) o noticiário de Brasília, vê um Lula muito diferente. Assim, O filho do Brasil conseguiu pecar no timing do lançamento, desconstruir um grande roteiro (que já estava escrito) e ainda jogar no lixo a chance de ser tanto rentável comercialmente, quanto elegante no trato com a coisa pública. Uma pena.

Bom, fim de mais um clássico. As torcidas já se armam para mais uma guerra. O pau promete quebrar feio dessa vez...

sábado, 23 de janeiro de 2010

Salve-se quem puder.

A legislação eleitoral (erroneamente no meu ponto de vista) não permite propaganda de pré-candidatos, mas permite no caso da Dilma.
A Dilma pode???
Veja que ela está há um bom tempo já em campanha.
No seu Blog tem banners explícitos como candidata a Presidente e não tem um Juiz que tenha coragem de enquadrá-la.
Pergunto:
Será que se fosse o contrário, o PT já não teria aberto fogo contra a campanha de quem quer que fosse?
Não quero dizer com isso que sou contra a Dilma. Eu só queria entender.
Por outro lado, vejo o titubeante Serra, que pra mim  já amarelou frente à popularidade do Lula. Será que o Aécio vai encarar?
Por isso a necessidade de ampla REFORMA ELEITORAL.
Mas como já estamos em ano eleitoral, e qualquer mudança agora  só serve para o ano seguinte, imagina a bagunça que será, com a ingerência cada vez maior do Poder Executivo no Poder Judiciário.

Salve-se quem puder.
Será que dá?

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Declaração do cônsul do Haiti no Brasil, George Samuel Antoine, sem saber que estava sendo gravado.

Essa entrevista com o Cônsul do Haiti em São Paulo contrasta com o artigo do Mauro Santayana, a respeito da tragédia naquele pobre país.

A tragédia histórica

Publicado no Jornal do Brasil, edição de 14/01/2010
Por Mauro Santayana

René Depestre era meu companheiro na redação internacional da Rádio Havana, em 1965. Tendo vivido no Brasil, onde secretariara Jorge Amado, Depestre juntava vários companheiros para repetir, em crioulo, o estribilho de seu programa dirigido ao Haiti, contra a ditadura de François Duvalier: Divaliê, assassin!. Depestre é hoje um dos nomes mais altos da literatura francesa. Seu longo poema, Arc-en-ciel pour l’Occident chrétien, publicado em 1967, é duro libelo contra o racismo.
As circunstâncias do exílio, de sua estada no Brasil e de meu interesse pela literatura nos aproximaram. Depestre me revelou o grande escritor Jacques Roumain e seu Gouverneurs de la rosée (Governadores do orvalho). Ele e Depestre nasceram na elite haitiana, mas ambos lutaram em favor dos oprimidos. Roumain, um dos fundadores do Partido Comunista do Haiti, era filho de um presidente da República. Ainda menino, viu seu país invadido pelos marines, em 1915, a pretexto de “ação humanitária”. Essa ocupação, que nada resolveu, e manteve os privilegiados, terminou em 1934, quando Roosevelt retirou as tropas, mas continuou “protegendo” o país.
O território ocidental da Ilha de São Domingos, que passou ao domínio francês em 1697, por cessão da Espanha, se transformou em imenso canavial, com a importação de escravos. Durante o século 18, o Haiti (que significa, na língua nativa, terra montanhosa) viu extinta a sua população indígena. Em 1781, dos 556 mil habitantes, 500 mil eram negros, e o resto se formava de mulatos e brancos europeus. A terra, ocupada pela cana e culturas menos importantes, foi arrasada pela exploração colonial, predatória. No início de 1790, animado com a Revolução Francesa, o negro Vincent Ogé chefiou uma insurreição contra os franceses, mas foi capturado, torturado e executado. Toussaint-Louverture retomou o movimento no fim da década, e depois de muita luta venceu as tropas napoleônicas, em 1802. Os franceses, no entanto, traíram o compromisso e o aprisionaram. Louverture morreu em Paris. Finalmente, em 1804, os haitianos obtiveram sua independência, embora só de fachada. Foi o segundo país da América a se tornar formalmente autônomo: o primeiro foram os Estados Unidos.
Não há (provavelmente nem mesmo em algum lugar da África negra) população tão sofredora quanto a do Haiti, nem elite tão brutal. A desigualdade entre ricos e pobres não encontra paralelo no mundo. O país é o de menor PIB do Ocidente e de maior incidência de Aids; exibe a mais alta taxa de mortalidade infantil conhecida, e mais de 80% de sua população vivem na indigência quase absoluta. É um povo que tem todo o direito de exigir reparação histórica do mundo ocidental o que, nestas horas, enfrenta os danos do grande terremoto – o maior que atinge o país, desde o ocorrido em 1751 – há 259 anos. Ele foi arrancado de seu continente natal, a África, pelos colonizadores europeus; mantido na escravidão, até que se revoltou, mas a abolição foi uma mentira. Tem sido submetido, durante os dois últimos séculos, a uma opressão comandada ora por tiranos, ora por governantes dóceis, mas sempre sob controle externo.
“Somos sem sorte, é verdade. Somos miseráveis, é verdade. Você sabe por quê, irmão? Por causa de nossa ignorância. Mas ainda não conhecemos a força que somos. Algum dia, nós nos levantaremos de um lado a outro do país e convocaremos uma assembleia geral dos governadores do orvalho, sairemos todos da pobreza e plantaremos uma nova vida”, disse Roumain, em seu grande livro, em julho de 1944 – um mês antes de morrer, aos 37 anos.
Uma vida nova, que Depestre, em seu forte poema, quer libertada do colonialismo: “Ao diabo, seus pratos insípidos; ao diabo, o vinho branco; ao diabo, a maçã e a pera; ao diabo, todas suas mentiras”.
O terremoto e seus mortos, entre eles a doutora Zilda Arns e os demais brasileiros ali atingidos, podem servir para despertar os remorsos e a solidariedade do mundo – que não deve limitar-se à presença dos soldados da ONU, nem aos donativos de emergência.